"Fique ligado. Acerte no alvo. Poupe munição. E nunca - jamais! rompa um trato com um Dragão."
Por Marcelo Queiroga
Os anos 80 vieram e se foram mais de
duas décadas atrás, no entanto não estão nem um pouco próximos do esquecimento.
Ao contrário, a Década Perdida, como ficou conhecida na América Latina, evidenciou-se
por uma série de acontecimentos político-sociais e outras peculiares
manifestações culturais que influenciaram e ainda hoje influenciam nossas
vidas. De tal modo, o poder dos anos 80 persiste de cabeça erguida e com muita
força em pleno século XXI. Os sinais disso podem ser vistos em toda parte, nos
filmes, na literatura, na música, e em tantas outras influências.
Sem dúvida, a narrativa imaginária dos
anos 80 revelou-se muito proeminente em diversos aspectos – grandes conquistas
foram alçadas pela ficção oitentista. Por exemplo, naquela época vieram
ao mundo diversas obras que ajudaram a estabelecer o ideal do rico subgênero de
ficção científica Cyberpunk. O modo Cyberpunk de ver o mundo evidenciou-se com longas-metragens
como Blade Runner (1982, dirigido
por Ridley Scott) e Robocop (1987, dirigido por Paul Verhoeven) – que retratavam uma combinação de grandes
avanços tecnológicos, atmosfera noir, e baixíssimos padrões de vida para as
pessoas ("High tech, Low life"). Além do mais, o livro Neuromancer
(de 1984), do genial William Gibson (que jamais poderia e poderá ser
esquecido), firmou-se como umas maiores novelas Cyberpunk de todos os tempos,
introduzindo ideais de inteligências artificiais avançadas e o inovador
conceito de um cyberespaço.
Sou jogador de RPG e sempre fui fascinado pelo
universo Cyberpunk, pois cresci respirando o melhor da atmosfera ficcional
criada nos 80. Mas, apesar de ser tão apaixonado por essa visão magnífica do
futuro, sempre me peguei envolvido também por universos fictícios da fantasia –
mundos fantásticos de dragões, elfos e anões, como o criado por Tolkien em O Senhor
dos Anéis, ou em séries animadas de grande sucesso na TV, como Caverna do
Dragão (quem se lembra de Willow - Na
Terra da Magia?).
Assim sendo, durante uma de minhas costumeiras
viagens pela internet encontrei por mero acaso um livro à venda. Era um livro
de RPG e o seu nome era Shadowrun. O preço não estava nada
acessível, principalmente por se tratar de um material usado, o qual havia sido
lançado no Brasil por volta de 1996, pela editora Devir. Eu já havia comprado
livros igualmente antigos, contudo, nenhum custando tão alto e em tais
condições. Eu me perguntei: por que tão caro? Por que esse valor exorbitante se
é um livro usado e em condições não tão boas assim? Entretanto, a resposta é bem
simples:
SHADOWRUN É FANTÁSTICO!
O preço elevado talvez fosse justificado pela qualidade do célebre jogo. De fato, ao ler a sinopse de Shadowrun 2ª edição fui completamente tragado para dentro de um universo que misturava duas espécimes da ficção que tanto aprendi a admirar: os gêneros Cyberpunk e fantasia, em um único e fantástico ambiente. Não resisti, tive de comprar (apesar de ter obtido um exemplar em um valor mais acessível).
O ano oficial da segunda edição de Shadowrun é
2053, e nos trás um mundo áspero, perigoso e puramente Cyberpunk, mas com a
audácia da inovação de introduzir elementos fantásticos à história, com a
evidente explosão da magia e a tudo que a ela pertence. O cenário expõe o poder
sufocante das megacorporações, um panorama onde a tecnologia e a magia
coexistem de forma pouco harmônica – um universo onde máquina e homem se fundem
para gerar verdadeiros leões do Metroplexo – guerreiros predadores das ruas
metropolitanas – indivíduos como os famigerados Samurais Urbanos. Shadowrun é o
um RPG onde aproximadamente 1% da população possui algum talento mágico e bruxos
e xamãs podem ser encontrados trabalhando como guarda-costas para algum figurão
político ou executivo poderoso, um cenário onde feitiços podem ser comprados em
pleno mercado negro, e aulas com um professor de magia custa em média 1.000¥ neoienes (¥ - a internacional
e valiosa moeda japonesa, substituta do dólar). Shadowrun também é um universo de
tecnautas, ou hackers se assim preferir, pessoas que viajam pela Malha – a rede
virtual de computadores, vagando pelo cyberespaço – a Matrix, pirateando dados
enquanto fogem dos perigosos GELOS, programas e estruturas virtuais que
protegem bancos de dados contra invasões, e são capazes até mesmo de matar um hacker
desafortunado (nunca subestime os GELOS NEGROS).
Com tudo isso, não seria difícil conceber o
quanto é complexa a essência de Shadowrun. O prelúdio da história desse jogo desliza
desde o período do fim dos anos 90 – revelando uma série de acontecimentos como
a ascensão das megacorporações, que se tornam imensamente poderosas à medida que o poder governamental
decresce e, permeia-se até por volta de 2011 – com o Despertar da magia, transformações
ante os presságios do calendário Maia – aonde o mundano Quinto Mundo chega ao
fim, e a magia retorna mais uma vez com a chegada do arrebatador Sexto Mundo.
E, como podem perceber, o ressurgimento da magia não foi nada sutil. Que tal
começar com mães saudáveis dando a luz a crianças “deformadas” apelidadas pela
mídia de anões e elfos, em um acontecimento denominado pelos cientistas de EGO
(expressão genética obscura). Ou, pessoas até então comuns, sofrendo estranhas
metamorfoses capazes de transformá-las em criaturas das lendas nórdicas, como
trolls e orks. Ou, quem sabe, com nativos-americanos declarando guerra ao
governo americano e usando a mais pura magia para forçar uma retirada em massa de
grandes cidades tidas por eles como seus legítimos territórios (já pensou isso
no Brasil?). Que tal um imenso dragão avistado por dezenas e mais dezenas de
pessoas durante uma viagem do trem bala japonês ao Monte Fugi? Ou então, uma
entrevista coletiva com um Grande Dragão chamado Dunkelzahn, ou um Talk Show
apresentado pelo mesmo? Você pode achar uma verdadeira viajem alucinógena todos
esses acontecimentos de Shadowrun, mas acredite, esse jogo consegue, e com
muita classe, unir tecnologia e magia em um mesmo cenário.
A
criação dos personagens do jogo, os shadowrunners – os corredores das sombras –
é livre e versátil. Apesar de alguns exemplos de arquétipos de personagens nas
primeiras páginas, o jogo está aberto aos jogadores para criarem seus personagens
como bem desejarem, desde um hacker pistoleiro, até um padre católico que usa
magia.
O
sistema de Shadowrun é bem interessante e parece que serviu de base para
criação de sistemas de RPGs consagrados, sistemas como Storytelling e
Storyteller. Contudo as regras desse RPG demonstram-se por demais intricadas em
algumas situações, especialmente na resolução de combates, no qual utiliza três
sistemas distintos. Além
disso, usa o popular D6, e emprega um sistema de dificuldades variantes para
a realização de ações (jogando um número X ou Y de dados que são
definidos pelas habilidades para tentar conseguir o maior número de sucessos
ante uma dificuldade específica), assim como no Storyteller.
Mas,
o tempo passou, e infelizmente o pesar dos anos fez-se presente em Shadowrun, e
são perceptíveis alguns valores ultrapassados no jogo. Por exemplo, as
“tecnologias futuristas” expostas principalmente na primeira e segunda edição
criadas por alguns profetas dos anos 80 se evidenciam por demais equivocadas ou
repletas de conceitos tecnológicos obsoletos: quem implantaria um limitado
receptor de rádio cerebral AM/FM em um mundo repleto de Wireless? Bem, nem tudo
pôde ser previsto no forno cyberpunk dos anos 80, e a tecnologia Wireless é
apenas um mero exemplo.
Não
obstante, acho que você deve estar se perguntando o que é Shadowrun, não é
mesmo? Shadowrunners são indivíduos que agem nas sombras, muitos deles não
possuem nem sequer registros nos bancos de dados, operando como verdadeiras pessoas
invisíveis. Existe uma infinita seção de possíveis trabalhos para um Shadowrunner:
espionagem, proteção, caçada à recompensa, recuperação de algum item (ou
artefato mágico), eliminação de indesejados... Bem, por muitos neoienes, um
Shadowrunner pode ser capaz de tudo, até mesmo vender sua alma para algum Mr.
Johnson de uma megacorporação, como a Renraku!
Shadowrun é um RPG que realmente vale a pena
ser jogado. Apesar das primeiras edições terem se tornado um pouco obsoletas,
não existe nada de tão discrepante que uma visão madura de um narrador,
adaptando e atualizando aqui e ali, não resolva. O sistema de combate é um
pouco lento e complicado, mas a história do cenário sobrepuja qualquer
empecilho do gênero. A editora FASA, criadora de Shadowrun, foi responsável
pelo jogo até a terceira edição, mas deixou de existir e esse RPG passou a ser
propriedade da Wizard of the Coast, que em 2005 lançou finalmente a excelente
quarta edição, com grande reformulação nas regras e atualização do cenário,
principalmente na questão da tecnologia – essencialmente com a introdução do
conceito de Realidade Aumentada, e em 2009, lançou a magnífica edição
comemorativa do aniversário de vinte anos do jogo.
No Brasil foi lançada apenas a segunda edição,
primeiro pela editora Ediouro (que se aventurou brevemente no mercado de RPGs)
e posteriormente pela Devir. Essas editoras também lançaram alguns suplementos
como o Metagen – que trás uma excelente aventura pronta, Contatos – com a
descrição e conceitos de alguns informantes para o jogo, revelando ainda mais a
importância da informação no mundo de Shadowrun, Catálogo do Samurai Urbano –
um guia prático de equipamentos para mercenários e guerreiros de rua, e mais
três romances arrebatadores – Não Faça Acordos com o Dragão, Escolha seus
Inimigos com Cuidado e Encontre sua Própria Verdade. Todos esses livros são
raros e difíceis de encontrar hoje em dia, mas valem a pena serem adquiridos,
sendo verdadeiros clássicos dos RPGs.
Finalmente, espero que todos tenham gostado
desse artigo que fala um pouco sobre o universo cyberpunk, alguns dos seus
frutos, e um dos jogos de RPG que para mim é um dos mais cativantes e
envolventes de todos os tempos. Um jogo que infelizmente é pouco conhecido no
Brasil, porém, quem sabe as coisas mudem após a leitura desse artigo por vocês.
Perceberão que não foi por mero acaso que já foram criados diversos jogos de
videogame (inclusive uma versão recente para XBOX 360, que parece mais um CS
com magia), card games e outros acessórios usando o título “Shadowrun”, e muito
menos por acaso que o jogo resiste veementemente em plena atualidade como um
verdadeiro símbolo do quão fascinante foi e ainda é o que foi concebido nos
anos 80 em meio ao imaginário Cyberpunk.
Até a próxima...
Um rpg dos bons, é uma pena que não exista interesse em traduzir a quarta edição pelas editoras nacionais. De fato é um excelente rpg
ResponderExcluirExistem rumores referentes a uma possível publicação pela Jambô! Será? Tomara! A Jambô parece que se dedica muito ao que publica.
ExcluirSair pela Jambô?Tomara que sim!! Shadowrun é um jogo extremamente atual apesar de ter sido publicado a mais de 20 anos e serviu de inspiração para filmes como Matrix e tantos outros.
ResponderExcluirUm jogo que vale a pena investir!
Parabéns pelo post Sr. Marcelo Queiroga!
curti a ideia do jogo, onde consigo esses livros?
ResponderExcluirNo mercado livre tem alguns.
ExcluirEu tive em BH recentemente achei um Catálogo do Samurai Urbano da segunda edição em bom estado de conservação. Lembranças boas desse jogo. Acho que vou começar um jogo online nas próximas férias. Belo artigo, Marcelo.
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