terça-feira, 31 de julho de 2012

Trilha Sonora do Jogo - Parte I


"Sabe qual é o problema da vida real? Não tem música de perigo!"
Jim Carrey em O Pentelho (Cable Guy) de 1996.

Por Mateus "HaroldoNVU" Nascimento

Na mesa de RPG, o mestre é o diretor e sobre ele cai a responsabilidade de conduzir tudo com um regente: os sistemas, a satisfação e temperamentos dos jogadores, as ações dos NPCs, comunicar as reações do ambiente, etc. Músicas e efeitos sonoros ajudam a conduzir nossas emoções na direção que o diretor planejou.

Com tanto em mente é comum que narradores às vezes negligenciem alguns aspectos descritivos da sua narrativa em favor dos mais objetivos, o que causa aquela sensação de se sentir interpretando no salão branco infinito onde Neo pede armas, muitas armas (The Matrix, 1999). Ele até disse: "vocês estão conversando num bar ao som de música alta e dançante", mas depois de alguns minutos de diálogo aquela imagem mental forte do pub barulhento e lotado começou a desvanecer.

Um dos recursos dos quais um mestre dispõe para fortalecer uma imagem mental é usar uma Trilha Sonora.



No início, havia barulho
Baixa o volume aí!

Quando eu comecei a jogar RPG regularmente o nosso grupo jogava no SESC da minha cidade, Porto Velho - RO. A gente tinha uma ambiente até legal: ficava bem localizado e havia mesas e cadeiras quase ilimitadas.

Infelizmente o espaço que a direção do SESC reservou para a gente era relativamente perto da piscina onde ocorriam atividades de recreação e hidroginástica. Não dava pra ver de onde estávamos, mas certamente dava para ouvir. Estimados leitores, espero que nenhum de vocês tenha tido de se concentrar no seu jogo de fantasia, cyberpunk ou horror pessoal ao som de É O Tcham! ou Bonde do Tigrão. Depois de alguns meses de batalha pelo espaço acabamos abandonando o barco por uma variedade de razões, uma delas a música do ambiente.

Mas se música e sons em geral tem o poder de destruir o clima do jogo, ela vira uma arma poderosa na mão de mestres que dispostos a tornar suas mesas ainda mais imersivas.

Nesse mesmo grupo, uma vez que deixamos o SESC e agora jogando em casa de jogadores, um dos nossos narradores de Vampiro: a Máscara e Mago: a Ascenção costumava usar alguns CDs de música pra ajudar a estabelecer o clima. A trilha mais popular na época era Apocalyptica, uma banda de cellistas que começou tocando covers instrumentais de Metallica e eventualmente começou a explorar mais composições próprias e configurações diferentes de instrumentos e voz. Na época parecia que a banda tinha caído do céu só pra tocar enquanto jogávamos Vampiro, tinham até uma música chamada Toreador. Era legal, mas era rudimentar também. A música não trocava de acordo com o teor do jogo, era só um CD rodando em modo repeat ou até alguém pedir pra trocar o disco. Ainda assim, era algo bem legal pro começo do século.

Quatro violoncellos tocando thrash metal. Yeah!

As Regras Básicas

Nesse período eu tive a oportunidade de conceber os primeiros príncipios que regeriam todas as trilhas que eu criaria no futuro. Eu as apresento como sugestões e com suas respectivas justificativas, mas não se sinta limitado à segui-las a risca se discordar:

1- Favorecer o instrumental: isso na prática significa que uma trilha sonora que monto vai ser composta de em média 90% de faixas instrumentais. Eu acredito que o arranjo instrumental da música deve ser o suficiente para comunicar emoções. Não só isso, o potencial de distração é menor. Você provavelmente não vai querer narrar o momento chave da sessão de jogo e ser interrompido por um coral crescente de jogadores cantando Bohemian Rhapsody do Queen por melhor que seja a canção. Mesmo quem não tá cantando alto as vezes tá cantando "na mente" e naquele momento um pouco menos interessado no que acontece no jogo em si.

2- Escolha o mais obscuro: se eu fosse músico e soubesse operar os softwares certos eu provavelmente comporia e gravaria cada faixa. Não é o caso e ao invés recorro a pesquisar o trabalho de outros artistas para compor a coletânea que formará a trilha. Algo em que eu acredito é que se a música é "nova" para aqueles jogadores então eles criarão uma associação entre ela e o jogo. Mas já caí na tentação de usar músicas de O Senhor dos Anéis e Record of Lodosss War em meus jogos de D&D e embora elas sejam muito boas e marcantes a associação não era tão bem formada. Além disso eu uso música para ajudar os jogadores a se focar no jogo da mesa, na narrativa e no momento emocional. Usando músicas de trilhas sonoras e bandas consagradas você corre o risco de sacrificar o envolvimento dos jogadores em favor daquela lembrança de assistir Anjos da Noite no cinema ou conseguir 5 estrelas naquela música em Guitar Hero.

3- Ao menos uma música pra cada humor: digo ao menos uma, mas sugiro mais se possível. O importante é que você tente antecipar toda a amplitude emocional do seu jogo e contemple cada uma delas com uma ou mais faixas. Tenha a música dos momentos tristes, o tema de combate, a canção de amor. E se puder ter múltiplas músicas pra cada um é melhor ainda. Como eu faço hoje é ter uma playlist especifica pra cada situação com 3 a 8 faixas em repeat e shuffle. RPG não flui como cinema e tv. A mesma perseguição de carros alucinantes que dura 6 minutos na tela pode durar uma hora na mesa e em situações assim cria-se uma certa fadiga musical, ou o tradicional "na boa, não aguento mais ouvir essa".

4- Use loops: um loop é para quem não conhece uma faixa musical que é construída de maneira que possa ser repitida ad nauseum sem que se saiba exatamente em que ponto ela começa ou termina. Por que? A música deve ser de fundo, mas quando ela se aproxima do climax final ou começa repentimente rápida após uma introdução calma naquele momento você vai perder um pouco a sua atenção dos jogadores. Loops são muito encontrados em trilhas sonoras de video game, mas com um pouco de conhecimento dá até pra se construir loops com músicas prontas. Nem todas as músicas precisam ser loops, mas na minha experiência quanto mais você conseguir, melhor.

5- Coesão estilística: Uma vez eu arquitetei uma Arquicrônica de Mundo das Trevas que envolvia os quatro módulos básicos do cenário: Mundo das Trevas, Vampiro: o Réquiem, Lobisomem: os Destituídos e Mago: o Despertar. Chamada de Arquicrônica porque envolvia quatro Crônicas que se passavam na mesma continuidade. O projeto morreu cedo por razões que não pertecem ao artigo mas continuo achando a idéia legal. Uma das coisas que explorei no planejamento foi dar a cada Crônica um feel próprio, na forma de priorizar certos instrumentos e estilos. Mundo das Trevas tinha mais Rock n' Roll e suas músicas envolviam mais guitarra, baixo e bateria. Vampiro era marcado por cordas fricionadas e piano e um som mais erutido. Lobisomem era mais percusivo e tinha um foco mais em World Music e Fusion. Mago por fim era mais Jazz e Electronica, com instrumentos mais variados. Não que cada trilha fosse só isso, senão nem eu aguentaria, mas esses estilos formavam a fundamentação do que era a música do jogo. O objetivo era que se un mesmo jogador interpretasse personagens em duas ou mais Crônicas distintas ele sentisse na hora que a música começasse a tocar que ele estava em um jogo diferente.

Já sentiu as vezes que seu personagem está em uma sala assim?

6- Coesão temática: Sua aventura se passa em Mumbai? Música indiana. Num clube em Ibiza? Electronica. Em Machu Picchu. Flautinha peruan... aliás, não. Nada justifica flautinha peruana. Brincadeiras a parte, o estilo de música que eu uso considera coisas como ambiente, tema do jogo, momento histórico, etc. O objetivo é ajudar o jogador forme aquela imagem mental forte e persistente. Normalmente se faz isso com palavras mas é impressionante como música ajuda.


7- Dissonância emocional: momento triste? Ponha uma música super alegre. Situação catastrófica? música otimista. Stanley Kubrick usava esse recurso com muita inteligência. Lembre-se da canção dos créditos de Dr. Strangelove, a cena com Singing in the Rain de Laranja Mecânica ou soldados marchando no Vietnam enquanto cantavam a Marcha do Clube do Mickey em Full Metal Jacket. Os japoneses também amam essa tecnica e você pode observá-la em diversos filmes e desenhos. O objetivo é justamente causar confusão. A situação provoca uma resposta emocional, a música provoca uma outra conflitante. A justaposição dos dois ajuda a tornar a situação.  IMPORTANTE: use esse recurso com parcimônia e sabedoria. Se você abusar ou usar no momento errado você vai mandar o clima da história pro espaço. Na minha opinião só se usa uma ou duas vezes por Campanha, de preferência na segunda metade.

8- O som do silêncio: Quando se usa uma trilha logo você descobre que aqueles momentos sem qualquer acompanhamento sonoro tem sem próprio peso. Usado no momento certo, esse espaço negativo auditivo pode fortalecer uma cena específica. Depende da sensibilidade artística do narrador reconhecer o momento certo de desligar o som. Um personagem do grupo morreu no meio de um combate ou personagens do grupo tem uma discussão pesada que pode levar a dissolução desse. Essas são situações em que acho interessante desligar um pouco o som. Sem música as vozes tem mais peso, os sons do jogo, até o rolar de dados tem mais peso. Saiba usar isso.

9- Baixa fidelidade: Pelo amor de Deus, não importa o quanto você ache que seu celular legal, não use o som dele pra essa finalidade. Qualidade de som ruim quase anula o efeito. Quanto mais grave você tiver ao seu dispor, melhor. Estamos na geração iPod, pouca gente ainda tem aquele microsystem em casa, mas mesmo um laptop já tem uma qualidade de som razoável. Eu sugiro umas caixas de som básicas de computador se você joga em ambientes muito abertos pra um reforço de grave e volume. No entanto respeite as pessoas ao redor. Não toque música se estiver em lugar público ou cercado de outras mesas de RPG.

10- volume: Saiba encontrar o volume certo. Baixo demais e o efeito será minimizado. Alto demais e atrapalhará. Via de regra, descubra o volume em que todo mundo fala com o mesmo tom e volume de voz de costume e que o jogador mais distante ouça o mestre com facilidade. O problema de se usar playlists em loop, ao invés da mesma música, é que você vai ter de ficar vigiando o volume a cada transição. Como cada faixa é masterizada com seu próprio volume natural e grau de compressão vai ser natural que certas músicas entrem muito altas ou muito baixas em relação a média que você testou. Com a prática se pega jeito.

Who's the leader of the club that's made for you and me? M-I-C-K-E-Y M-O-U-S-E!

Eu encerro a primeira parte desse artigo por aqui para não deixar a leitura cansativa. Reflita e em breve sai a parte dois falando sobre efeitos sonoros, onde consegui-los, como remixa-los com facilidade, além de dicas de onde conseguir efeitos e músicas.

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